quinta-feira, 4 de junho de 2009

A volta da mulher morena

Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus últimos cantos
Dai morte cruel à mulher morena!

O Homem Que Não Estava Lá

Quando eu estava subindo a escada,
Encontrei um homem que não estava lá.
Ele não estava lá hoje também.
Ah, como eu queria que ele fosse embora.

(Hughes Mearns)

Seymour, uma apresentação

"Assim, pois, meu velho confidente, num espírito de congraçamento, antes que nos juntemos aos demais - os que estão espalhados por aí por toda parte, inclusive, estou certo, os loucos do volante de meia-idade que insistem em nos mandar para a Lua, os vagabundos que se crêem iluminados por Buda, os fabricantes de cigarro com filtro para os homens que sabem escolher o melhor, os beatnicks, os mal-ajambrados e os petulantes, os adeptos de cultos obscuros, todos os imponentes peritos que tão bem sabem o que devemos ou não fazer com nossos humildes órgãos sexuais, todos os jovens barbudos, orgulhosos e iletrados, bem como os guitarristas sem talento, os assassinos do budismo zen e os deliqüentes juvenis de roupas padronizadas, todos esses que, do alto de sua infinita ignorância, olham para este esplêndido planeta por onde (por favor, não me interrompa agora) passaram o Biriba, Cristo e Shakespeare -, antes de nos juntarmos a todos eles, eu muito particularmente lhe peço, velho amigo (para dizer a verdade, quase imploro), que aceite de mim este despretensioso buquê de recém-desabrochados parênteses: (((())))."

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O Haver

(Vinícius de Moraes)

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
essa intimidade perfeita com o silêncio.
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo.
Perdoai: eles não têm culpa de ter nascido.
Resta esse antigo respeito pela noite
esse falar baixo
essa mão que tateia antes de ter
esse medo de ferir tocando
essa forte mão de homem
cheia de mansidão para com tudo que existe.
Resta essa imobilidade
essa economia de gestos
essa inércia cada vez maior diante do infinito
essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons
esse sentimento da matéria em repouso
essa angústia da simultaneidade do tempo
essa lenta decomposição poética
em busca de uma só vida
de uma só morte
um só Vinícius.
Resta esse coração queimando
como um círio numa catedral em ruínas
essa tristeza diante do cotidiano
ou essa súbita alegria ao ouvir na madrugada
passos que se perdem sem memória.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
essa imensa piedade de si mesmo
essa imensa piedade de sua inútil poesia
de sua força inútil.
Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
de pequenos absurdos
essa tola capacidade de rir à toa
esse ridículo desejo de ser útil
e essa coragem de comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade,
essa vagueza de quem sabe que tudo já foi,
como será e virá a ser.
E ao mesmo tempo esse desejo de servir
essa contemporaneidade com o amanhã
dos que não tem ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar,
de transfigurar a realidade
dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é
e essa visão ampla dos acontecimentos
e essa impressionante e desnecessária presciência
e essa memória anterior de mundos inexistentes
e esse heroísmo estático
e essa pequenina luz indecifrável
a que às vezes os poetas tomam por esperança.
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
na busca desesperada de alguma porta
quem sabe inexistente
e essa coragem indizível diante do grande medo
e ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer
dentro da treva.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
de refletir-se em olhares sem curiosidade, sem história.
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho,
essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte
esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada,
ela virá me abrir a porta como uma velha amante
sem saber que é a minha mais nova namorada.